Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O Ventor em África

Foi assim, em 1968, em Marrupa, no Niassa. Ficamos os dois frente a frente, envolvidos por um mundo dourado

O Ventor em África

Foi assim, em 1968, em Marrupa, no Niassa. Ficamos os dois frente a frente, envolvidos por um mundo dourado

width=

O Vexilóide de Alexandre Magno

wildlife-3232671_960_720.jpg


Marrupa 68: foi assim que ele me olhou


Na rota do meu amigo Apolo com o vexilóide de Alexandre Magno e o mreu Leopardo


Em áfrica, tudo é grande e belo. Podem ver aqui o meu menu africano



Um PV2. Havia destes no Niassa, em operação. Bom dia Tigres onde quer que estejam


Depois? Bem, depois ... vamos caminhando!

Adrão e o Ventor
Caminhando por aí
Ventor e a África
Observar o Passado
Planeta Azul
A Grande Caminhada
A Arrelia do Quico
Os Amigos do Quico
Fotoblog do Quico
Fotoblog do Ventor
Fotoblog de Flores
Rádio Ventor
Pilantras com o Ventor
Fotoblog do Pilantras
Montanhas Lindas
Os Filhos do Sol
As Belezas do Ventor
Ventor entre as Flores

09.04.20

A Senhora da Lângua


Quico e Ventor

Morta pela ilusão do calor que lhe dava vida, e ...

Eu sei que o Ventor ainda hoje lamenta alguns bocados da sua passagem por Moçambique e este é um deles. Mas também em locais tão longe do mundo e escondidos na selva ou quase, como se haviam de entreter? Caminhar, caminhar, caminhar ... e nem todos gostavam disso! A vida deles não era só defenderem-se dos "turras" e continuarem a levantar-se todos os dias. Era necessário continuarem a levantar-se todos os dias mas, continuar, também, a viver a vida!

«Esta é mais uma história verdadeira passada comigo e com Companheiros de Guerra».

Todas as histórias começam com: "era uma vez" ou, "once upon a time"!

Faz muitos anos, nas longínquas "lânguas" de Marrupa, quatro marmanjos nascidos neste belo jardim, à beira mar plantado, decidiram ir à caça numa das mais belas terras de África - Marrupa, que significa, em linguagem indígena, Desterro. Não é o Desterro de Belém, não! É mesmo um Desterro na selva!

Partimos direitos à "picada", não no fim ou no princípio, mas no meio de algures, que nos poderia levar até ao fim do mundo, mas logo saímos dela, penetrando num matagal sem fim! Tomamos posições e, como sempre, lá continuava eu na ponta esquerda. Tinha sempre a direita protegida e a esquerda era comigo e, por vezes, as situações tornavam-se bem difíceis!

Neste caso, foi a mim que calhou enfrentar uma grande queimada que partira da lângua para o meu lado e à direita da lângua, para fugirem à queimada, partiam os outros três amigos.

Mas eu tinha tendência para me afastar e a queimada começou a empurrar-me para fora dela, pois apesar de tentar fugir aos matos queimados, já estava pior que um carvoeiro. De repente, enquanto magicava como sair daquela, sem ficar isolado, ouço gritar: "Ventor! ..." Pensei que estavam aflitos, pois de outra maneira não gritavam! Desato numa correria louca sobre o outeiro queimado direito à lângua e lá do alto, vejo lá no fundo, os três com as armas em riste! Mas lá, o mato e o capim não tinham ardido e eu só os via do peito para cima e cada vez mais corria perante o espectáculo da estupefacção daquelas três caras alarmadas!

Quando me viram, gritaram para ter calma e eu, como não tinha ouvido nenhum tiro, achei que, se calhar, encontraram alguém ferido ou, então, deram cabo de algum "turra", à coronhada!

marrupa.jpg

AM 62 - Aeródromo de Manobras 62, Marrupa, em 1968, no centro norte de Moçambique, Distrito do Niassa

Aqui passei oito meses e meio da minha vida. Nesta foto estamos a ver o edifício que albergava a messe, o comando ao centro e na ponta direita, não visível, estava o posto de rádio com as suas antenas por cima do telhado. Depois há um espaço aberto e mais junto ao arame farpado está o nosso bar, o Calhambeque. À esquerda da foto, ficam as camaratas do pessoal. A nossa camarata, 3 mangas, era no posto de rádio. Ali trabalhávamos e dormíamos, sempre alerta! Lá fora do arame farpado, o meu campo de exercícios, as "lânguas" de Marrupa. Quilómetros em volta do arame farpado, só ou acompanhado, desafiava o improviso, caminhando.

Bem, à medida que me aproximava e nada via, ouvi um deles dar um tiro. Pum!!! No vale parecia que toda a selva se desmoronava! Pum !!! Outro! Aproximei-me e vejo o que não imaginava! Uma jibóia com 4,70 metros, o que para nós a tornava colossal! Deu-lhe os dois tiros porque, segundo eles diziam, estava a levantar-se em tom ameaçador! Tinha os dois tiros de G-3 na cabeça. Um no centro e outro mais ao lado. Fazia pena ver a bicha ali, estirada, sem razão aparente e eu não gostei nada que ela tivesse sido morta, ali, fora do seu buraco, pois o aquecimento da queimada tinha atirado com ela, cá para fora, como se tivesse havido por ali, um bafo de Primavera.

Mas o mal estava feito! Agora era pega-la e leva-la até ao Aeródromo, como troféu!

Peguei num punhal do mato e cortei um arbusto que o meu amigo Rafael, um Macua de Marrupa, me tinha ensinado como fazer uma corda na selva com a sub-casca de árvore ou arbusto. Atei aquela fitinha em volta da cabeça da jibóia e a um pau; nesse instante, ela levantou aquela cabeçorra a espirrar terror e sangue contra mim e eu só tive tempo de lhe tentar esmagar a cabeça com o tacão da bota. Só parei quando achei que estava bem esmagada, não fosse fazer uma tentativa igual emanada de um terror inimaginável!

constrictor.jpg

Uma boa constrictora tirada do Pixabay

Dei os nós cegos à fita tirada do arbusto e comecei a arrasta-la. Era bem pesada e tivemos que nos revezar para a levar de rastos até à base. Fomos pelo corta-mato até à pista e custou-nos bastante, pois estávamos muito longe. Quando cheguei à pista com ela sempre a fungar sangue e terror, olhei bem os olhos mortíferos do animal e achei que ela se recusava a morrer! Eram cinco horas locais quando chegamos e estavam os negros civis a abandonar o trabalho que realizavam para os nossos serviços de infra-estruturas.

Pedi a um deles para lhe cortar a cabeça com uma catana mas, o gajo disparou numa correria louca, e outro, e outro e ainda mais outro! Todos fugiam, até que um, bem mais atrevido, se aproximou com uma catana e lhe deu o golpe de misericórdia, cortando-lhe a cabeça. Era uma jibóia média mas já metia muito respeito a qualquer e preparava-se para ser a grande senhora das "lânguas" de Marrupa.

Ainda hoje lamento a morte daquela bela "rapariga" que com dois tiros de G-3 na cabeça, tão valentemente tentou insurgir-se contra a morte e contra os seus carrascos.




O Ventor e a sua amiga cegonha, 1969, em Vila Cabral