Natal de 1969, em Vila Cabral
Era uma vez no Niassa.
Na antevéspera de Natal de 1969, no dia 23 de Dezembro, estávamos nós mergulhados numa grande trovoada sobre o AM61. Faz hoje 49 anos este acontecimento que nunca esqueço.
Com a ajuda de Celine Dion, deixo aqui para todas as mulheres de Vila Cabral desse Natal de 1969, os meus votos de Boas Festas, pelo menos para todas que por cá andam, 49 anos depois e espero que sejam muitas
Este saco com que o Pai Natal anda hoje por aí a distribuir prendas, talvez seja o mesmo que nos levou o bolo rei, em Vila Cabral
Os raios e os trovões eram por demais e, de repente, começamos a ouvir cair morteirada para os lados de Nova Madeira, relativamente perto de Vila Cabral e da Força Aérea. Aquela morteirada misturada com o ribombar dos trovões, transformou Vila Cabral numa cidade em pé de guerra e amedrontada. Um capitão que comandava uma companhia que tinha chegado do mato, um ou dois dias antes, estava a beber uma cerveja no café Planalto. Ao ouvir a morteirada correu para o seu batalhão, alertou a sua companhia gritando: “a Força Aérea está a ser atacada, tudo para as berliers”!
Os seus homens vestiram-se e calçaram-se conforme puderam (acabando de o fazer nos seus transportes), pegando as suas armas sempre a correr e atravessando Vila Cabral a toda a velocidade. Eu estava de serviço no Posto de Rádio e, ao ouvir aquela malta entrar pelo AM61 dentro, saí para ajudar a estacionar as viaturas e perguntar o porquê de todo aquele aparato. O tal capitão contou-me tudo e, entretanto, chegou junto de nós mais meia companhia dos comandos que estavam ali perto de nós. Metade ficou para defenderem “a sua casa”, a outra metade foi juntar-se a nós para nos ajudarem a defender a nossa. Todos estavam convictos que o ataque de morteirada caía sobre a Força Aérea e era necessário juntarmos forças para a defesa.
Eu estava todo molhado como um pintainho e o telefone no posto de rádio tocava. Entrei e atendi. Era uma senhora de Vila Cabral que perguntava apenas isto: «vocês estão a ser atacados»? “Não minha senhora aqui ainda não caiu morteirada nenhuma”! «Mas nós estamos a ouvir as explosões e o barulho dos morteiros vem daí»! Fui informando aquela senhora e outras do que se passava mas não acreditavam em mim. Achavam que eu mentia para as acalmar mas eu só dizia a verdade. Não havia, nem tiros de balas na Força Aérea, em Vila Cabral e muito menos tiros de morteiros. Não sabia como lidar com a incredibilidade que elas tinham da minha informação, pois pensavam tratar-se apenas de uma mentira. Mas era a pura verdade.
«Aguemtem-se, que amanhã, as mulheres de Vila Cabral, vão fazer o melhor bolo-rei do mundo para o vosso Natal»
Noite de Natal de 1969, a noite seguinte, lá estou eu a comer o tal melhor bolo rei do mundo
Aqui, o nosso amigo açoriano, Leão, coloca um pouco da cerveja que tinha na garrafa para regar mais um pouco o meu bolo rei. As minhas botas de água, as tais que algum tempo antes me defenderam as pernas das garras dáguia enorme que me queria despedaçar aos bocadinhos. Mas teve azar! Ficamos agarrados um ao outro. Ela agarrou-me uma perna com as garras e eu fui-lhe esmagando a cabeça com a outra bota a sufocá-la. Eram as botas da minha salvação! O Sargento Dias nem acreditava no que estava a ver
No dia seguinte, junto ao belo pinheiro que eu roubei ao Engenheiro, grande chefão das florestas do Niassa, que não mo quis dar, comemos o tal bolo rei que seria o melhor do mundo. E então não é que era! Não pelo bolo rei, mas pelo amor com que foi feito. E assim, Trovões, Relâmpagos, Morteiros, Exército, Comandos, Força Aérea e Mulheres de Vila Cabral e o seu bolo rei, estivemos todos unidos no mesmo combate.