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O Ventor em África

Foi assim, em 1968, em Marrupa, no Niassa. Ficamos os dois frente a frente, envolvidos por um mundo dourado

O Ventor em África

Foi assim, em 1968, em Marrupa, no Niassa. Ficamos os dois frente a frente, envolvidos por um mundo dourado

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O Vexilóide de Alexandre Magno

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Marrupa 68: foi assim que ele me olhou


Na rota do meu amigo Apolo com o vexilóide de Alexandre Magno e o mreu Leopardo


Em áfrica, tudo é grande e belo. Podem ver aqui o meu menu africano



Um PV2. Havia destes no Niassa, em operação. Bom dia Tigres onde quer que estejam


Depois? Bem, depois ... vamos caminhando!

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13.01.06

O Ventor e o Medo ...


Quico e Ventor

... em Tempos de Guerra

O Ventor nunca foi medricas mas foi sempre muito cauteloso. Mas mesmo não sendo medricas, por algumas vezes, encontrou-se em situações de ter medo. Já me falou de várias dessas situações na sua passagem por África e, algumas, eu colocarei aqui. Hoje falo-vos de uma dessas situações de medo.

Disse-me o Ventor:

«Com a minha chegada a Vila Cabral, no verão de 1969, chegou também o meu vício da "caça". Raramente arranjava voluntários para, juntamente comigo, palmilharmos uns bons quilómetros, em redor da cidade. Por isso, quase sempre executava essa tarefa só. Só não, porque tinha os melhores companheiros que se podem imaginar para caminhar naquelas situações. A Leoa e o Goldfinger, algumas vezes acompanhados pela sua rapaziada, os seus filhotes.

Nos primeiros dias, comecei a rondar a cidade, as suas ruas, as suas tascas e a beber umas laurentinas, no Café Planalto. Depois comecei a afastar-me da cidade e a caminhar pelos seus arredores, atravessando campos de feijões e de milho, pinheiros (muito novos) e eucaliptos (novos e velhadas) capins sem fim, caminhando atrás de rolas, pombos verdes, perdizes, codornizes, patos, etç.

Posteriormente, fui-me afastando mais e entrei no encalço do facochero, uma espécie de javali. Numa destas escapadelas, levava comigo apenas, a Leoa e o Goldfinger e fui para uma lângua onde dias antes tinha visto patadas desses facocheros e disse, cá para mim que, pelo menos, teria de ver um ou mais a correr. A verdade é que quando estava a aproximar-me sorrateiramente do local, a Leoa levantou o pelo no lombo (parecia um campo de centeio a germinar), levantou uma pata dianteira e olhou, firmemente, para o morro, junto de nós, um pouco à direita e o Gold numa pequena corrida, tomou posição a seu lado. Julguei que seriam perdizes e caminhei para o local com a arma pronta a fazer fogo com chumbo para coelho e perdiz. Entrei na base do morro e o capim era da minha altura.

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Um dia destes encontrei um local, topograficamente, muito semelhante a esse de Vila Cabral. Em vez de capim, tinha outro tipo de ervas, também bem altas e em vez de leões imaginários ou até raposas, tinha amigos penudos como rolas, tal como lá e também outros amigos penudos, como pardais, pintassilgos, etç. Lá eram outros. E apesar de, em tempos, ter ouvido falar do leão de Rio Maior, neste morro, nem me passaram pela cabeça raposas e muito menos leões.

Comecei a trepar e quanto mais trepava na base do morro, maior o capim se tornava, ficando em posição de não ver nada à minha volta. Nesse momento, os cães ficaram de tal forma que me pareceu estarem com medo. Reparei na Leoa no meio do capim, duas passadas à frente, um pouco à minha esquerda e o Gold, na mesma posição, um pouco à direita. Disse-lhes baixinho: "venham cá, não se afastem". A Leoa tinha o seu pelo curto todo esticado, pata no ar e parecia que à sua volta só existiria eu, o Gold e o terror, pois a sua pele, com o pelo esticado, até tremia. Olhei o Gold e estava na mesma. Disse cá para mim: "vocês nunca estiveram nesse estado e agora até eu já estou a ficar na mesma. Só me falta o cabelo levantar-se na cabeça. Vou mudar o chumbo"!

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Só pensava em algo como isto. Aguardando serenamente a nossa subida

Mudei o chumbo de caça pequena, para chumbo de caça grossa. Fui olhando em redor e substituindo os cartuchos até completar a mudança dos cinco cartuchos da Browning. "De vagarzinho a meu lado", disse eu para os cães. Cheguei a pensar sair dali por onde entrei mas, imaginei tratar-se dos leões que foram roubar os porcos ao Garcez. Retirar seria dizer-lhes para avançarem! O sítio era ideal para os leões controlarem tudo, em redor e o medo denunciado pelos cães mais o cheiro intenso a bravo, a animais selvagens, mais me levava a acreditar tratar-se de caça grossa, ao ponto de, falando com os meus botões, dizer para os cães: "Estamos lixados"! Mas a Leoa, como sempre, estava em pulgas e o Gold também, aguardando que eu desse ordem de ataque!

Fomos subindo, passo a passo e só tentava ver se o capim remexia à nossa volta. Mas à nossa frente só existia capim e cheiro e, o Horizonte, sobre a minha cabeça, onde nunca mais chegava. Nunca mais trepava a subida daqueles meia dúzia de metros sem fim, pois nunca mais acabavam. Com aquele cheiro a bravo que nos rodeava, só imaginava um animal feroz lançar-se, de cima para baixo, sobre mim e os cães e só pensava não perder um segundo na hipótese de eu abrir fogo a tempo. Mais atrás e à minha esquerda, estavam os facocheros. Seria que estavam ali os leões para caçar os facocheros? Seria que fugiram à minha chegada ou estavam prontos para atacar? Perguntas sem fim, fervilhavam na minha cabeça e a resposta estava prestes. O cheiro a bravo era cada vez mais intenso e os meus companheiros não me animavam! Eles estavam como eu ou ainda pior. Imagino as perguntas que também fervilhariam nas suas cabeças. Sentia que eles queriam era receber a ordem esperada. Ataquem! Mas, para os animar a eles e a mim, disse: «Calma, vamos conquistar o morro e ficaremos senhores do planalto e da lângua".

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Uma destas não seria e leopardo também não. Onde eles já iriam!

Mais umas passadas e assim foi. O animal selvagem não se lançou sobre nós e, agora, senhores daquele mini planalto, a minha arma, tal como um animal com olhos, procurava tudo à minha volta. Naquele momento, só não queria que a Leoa e o Goldfinger se afastassem de mim para não se colocarem na minha linha de tiro, pois já tinha tido experiências dessas. Confirmei que não havia nada e a minha primeira reacção foi: "seus grandes burros, seus cagarelas, meteram-me mais medo vocês os dois que os leões do Garcez se estivessem aqui"! Mal acabei de falar, foi o sinal de libertação que a Leoa quis ouvir. Deu uma corrida e mandou-se a uma toca esgaravatando tudo em volta da sua entrada. Vi a toca e chamei-a. Ela obedeceu-me e deixou de escavar, enquanto ao Gold só lhe faltou colocar uma pata com um dedo esticado na testa e chamar-lhe maluca.

"Venham cá, vamos ver se adivinhamos o que está aqui"! Eles afastaram-se, eu espreitei a toca. Senti que algo se mexia lá dentro. Meti o cano da arma no buraco até à curva da toca a ver se era atacado e uma raposinha pequenina aproximou-se, cheirou-o e olhou-me. Pareceu-me ouvir: "que raio Ventor, porque vens atrás de mim com esta coisa tão fria"? "Oh, raposinha, a tua mãe deve estar a ver-nos e deve ter ficado aterrorizada. Mas podem ficar descansadas que nada vos fará mal. Hoje, nem a Leoa"!

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Foi num buraco assim que meti o cano da Browning, já com chumbo grosso e lá dentro, uma das três. habituada a esper a mãe, foi logo cheirar o cano da arma

Para mim foi uma grande aventura que durou alguns minutos, eternidade que nunca mais esqueço. Ainda hoje vejo aquele focinhinho pequenino a cheirar o cano da Browning e aqueles olhinhos brilhando, fixos nos meus.

Fui embora para o AM61 e contei a peripécia e a maneira como se pode ter medo a qualquer momento. Basta pensar no pior. No dia seguinte um emissário do Governador do Distrito do Niassa pedia-me se indicava o local das raposinhas que o Sr. Governador queria uma. Já não sei bem como foi, mas sei que me chatearem tanto que lá indiquei o local. Se a minha experiência empírica funcionasse, pensei, eles não as encontrariam. Levei lá dois homens armados de pá e pico e transpiraram à farta para encontrar as raposas, escavando um chão que parecia feito de betão. Gozaram comigo e até me disseram que mentia, porque não estava lá raposa nenhuma, como se eu tivesse necessidade de pregar uma aldrabice dessas que, provavelmente, tal coisa, nem pela cabeça me passaria.

Ainda hoje tenho dúvidas se eles acreditaram nas raposas. Dias depois, passei naquela zona com mira nos facocheros e um pouco afastado do mesmo local para não perturbar as meninas e encontrei a mãe e as raposinhas a brincar. Talvez fossem as mesmas, talvez fossem outras mas, a verdade é que cheguei à Base e disse: "desta vez, voltei a ver as raposas e tenho a certeza que são, pelo menos, três pequeninas e uma grande. Mas desta vez, nem que o Kaúlza de Arriaga me pedisse, nunca diria onde estão"!

A mãe deve-me ter cheirado pois, dois dias depois, fui espreitar o local dessa nova toca, com os cães junto de mim para não lhe fazerem nada. Caminhei com os cães junto das minhas pernas para a Leoa não atacar as raposinhas e também já lá não estavam!

Pelo menos tive o prazer de ver aquela família de raposas muito felizes na sua brincadeira de uma tarde quente, sobre outro morro da cor da ferrugem. Um morro rapado, sem capimjunto da toca e, à sombra de árvores frondosas. Essa toca tinha sido toca de hienas. Estive pouco tempo a olha-las porque era difícil fazer a Leoa obedecer-me, muito tempo, sem fazer barulho. Mas eles sabiam que eu estava contente e aguentaram-se. Depois voltei pelo mesmo caminho a pensar qual delas me olhou e cheirou o cano da arma. Seria, certamente, a mais atrevida que brincava tropeçando e caindo enrolada, voltando logo a levantar-se e a mandar-se para cima da mãe. Umas belezas aquelas raposinhas».




O Ventor e a sua amiga cegonha, 1969, em Vila Cabral