Solidão Absoluta
Estávamos no ano de 1968, em Marrupa, no centro Norte de Moçambique - contou o Ventor.
«Tínhamos decidido, à noite, antes de nos irmos deitar, eu e outro amigo cabo-verdiano, levantarmos-nos cedo e irmos fazer uma caçada. Assim foi. Levantámos-nos cedo mas, a escuridão era total e o nevoeiro quase. Fomos abrangidos pela excitação, mas estava decidido! Preparamos as armas, chamamos os cães e partimos para o desconhecido».
O Ventor prossegue a narração:
«No nevoeiro escuro, o silêncio era companheiro do capim e irmão da madrugada! O cheiro do mato misturado com o odor da presença dos animais selvagens, era a campainha de alarme no meu cérebro. Ao meu lado, os meus companheiros da caminhada perscrutam tudo que possa servir para a acção defensiva.
Os meus companheiros, naquele momento, eram o meu amigo e colega cabo-verdiano, o Melo, e estes três inesquecíveis, o Bolinhas, o Zorba e a Diana, cães rafeiros, mas amigos a valer!
No silêncio da selva, a escuridão de um nevoeiro denso, cerrado, escuro como breu, no começo da aurora, ainda indecisa mas já com indícios de marcar presença. O capim era um gigante que terminava bem acima das nossas cabeças e, nas suas entranhas, vivia o terror!
As espingardas estavam colocadas em posição de combate e os cães pisavam-nos os calcanhares. O cheiro a "bravo" indiciava possibilidade de algum perigo e a humidade matinal poisava lentamente sobre os nossos bigodes, pestanas e sobrancelhas, em gotículas redondinhas que faziam lembrar bagos de chumbo ligados por magnetismo a uns araminhos de aço.
A selva não era linda, porque não se via, o capim era uma massa uniforme em forma de palha quase seca e nele deixávamos um túnel que se abria à nossa passagem à medida que o baixávamos colocando as botas de lado para o pisar de seguida e caminharmos sobre ele. À nossa volta, víamos nada e, só ouvíamos silêncio.
Lembrei-me então de "The Sound of Silence" do Paul Simon.
Hello, darkness, my old friend,
I've come to talk with you again, . . .
Então, enviei dois tiros de G-3 para o ar e, de repente, parecia que o mundo desabava sobre nós. Os cães sentiram-se mais inspirados e nós, apenas com dois tiros e o "hello darkness" na mente, sentimos-nos mais seguros a aguardar que Apolo brilhasse sobre a lângua da savana que estaria por ali, algures, escondida no nevoeiro da madrugada.
Continuamos a caminhar pelo romper do dia e entre o nevoeiro, mas não podíamos assobiar ao silêncio porque após aqueles dois estrondos nós necessitávamos de caminhar, lado a lado, com ele.
A linda visão de uma gazela a comer
À medida que o tempo passava, a luz começou a progredir perante farrapos de névoa que beijava a altura do capim mas, aqui e ali, abria laivos de pinceladas sobre o verde das árvores e o dourado do capim. Sem rumo, completamente à deriva, continuamos na direcção escolhida e acertamos no trajecto. Encontramos a picada e, quando me apercebi onde estava, entramos num carreiro que nos levava ao poço que nos abastecia o Aeródromo de água. Nesse instante, já conseguíamos observar o nosso amigo Apolo de escopro e cinzel a despedaçar a névoa mais alta e, por razões de segurança, trepamos para cima do poço, onde nos deixamos ficar de armas em riste.
Gazelas na lângua
Apolo continuava o seu trabalho de "erosão" e já nos espreitava por aqui e por ali e, numa dessas janelas abertas, avistamos uma gazela. O meu amigo ripou da arma e apontou e, no momento do disparo, uma fracção de segundo, mais cedo, eu, com o cano da minha arma, levantei a dele fazendo com que a função do tiro servisse apenas de arremesso contra o silêncio. Ao estrondo de mais aquele tiro avistámos, lângua abaixo, um grupo de gazelas procurando onde se refugiar, fugindo ao barulho, exactamente o inverso da nossa caminhada anterior, fugindo ao silêncio!
Acolitado pelo silêncio e pelo barulho, decidi, num ápice, que nada devia morrer ali!
Hello, Darkness!!!!