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O Ventor em África

Foi assim, em 1968, em Marrupa, no Niassa. Ficamos os dois frente a frente, envolvidos por um mundo dourado

O Ventor em África

Foi assim, em 1968, em Marrupa, no Niassa. Ficamos os dois frente a frente, envolvidos por um mundo dourado

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O Vexilóide de Alexandre Magno

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Marrupa 68: foi assim que ele me olhou


Na rota do meu amigo Apolo com o vexilóide de Alexandre Magno e o mreu Leopardo


Em áfrica, tudo é grande e belo. Podem ver aqui o meu menu africano



Um PV2. Havia destes no Niassa, em operação. Bom dia Tigres onde quer que estejam


Depois? Bem, depois ... vamos caminhando!

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Ventor entre as Flores

14.11.04

Mar Alto


Quico e Ventor

E o Ventor continua a descrever-nos a viagem do Niassa com ele e seus companheiros, por mar alto, na sua primeira etapa, rumo a Luanda.

«Ao deixarmos para trás o último elo, o Cabo da Roca e a serra de Sintra, passamos a ter apenas, Niassa, mar e céu. E, entretanto, chegara a hora do almoço. Já não me recordo o que foi o nosso almoço no primeiro dia de Niassa mas duma coisa eu tenho a certeza, fui ver como era mas não comi. Como havia de comer se na véspera tive dois jantares!

Na véspera comi um cozido à portuguesa na hora de jantar normal e na casa onde morava fizeram-me um espargueti fabuloso, um prato que eu aprecio tal como se fosse um italiano vero. Depois de um cozido e de uma caminhada por Alcântara e pela Torre de Belém, regressei a casa porque o dia seguinte não seria para brincadeiras. Só para rebocar a minha mala de livros iria ser bonito!

Ao chegar a casa ainda me esperavam acordados e ainda me fizeram companhia para comer um prato de espargueti. O espargueti guisado com toucinho  intermeado, chouriço e bacon, escorrega, acomoda-se e não faz estrago nenhum. Até parece que não ocupa espaço! Cozido e espargueti entendem-se às mil maravilhas, com o Ventor. Neste caso, eles sabiam que tinham de se acomodar os dois e não incomodar o Ventor. Não satisfeito, comi outro prato de espargueti, na manhã seguinte, ao pequeno almoço».

«Parecia que estava a adivinhar tudo o que estava para vir. Não voltaria a comer um cozido como este tão depressa e, então, espargueti como aquele, não voltaria a ver tão cedo, pensava eu. E assim foi!

Todas estas razões foram suficientes para não me preocupar com o almoço no dia da grande abalada. Levava comigo uns chouriços e outras coisas que me foram valendo até Luanda. Normalmente, nos dias pós-embarque, quando terminava a minha leitura ou os meus passeios pelo convés, a apreciar o mar, perguntava aos mais atentos de que era o almoço ou o jantar, a resposta era invariavelmente a mesma. Ou era estilhaços com arroz, ou era arroz com estilhaços! Ás vezes deslocava-me lá para ver o que me calhava em sorte e se conseguia comer; mas não! O arroz sabia e cheirava a mofo e ia servindo para alimentar os peixinhos. Normalmente havia sempre alguém que comia mais um pouco e também era isso que me fazia ir levantar a minha refeição. Devia fazer algo pela sociedade onde me integrava. Pois eu não podia tragar aquele arroz a saber a mofo. Nunca me tinham calhado pratadas daquelas, nem em Adrão e não seria ali que iria iniciar-me! Foi assim até Luanda, mas eu também tinha as minhas alternativas. Bolacha baunilha com cerveja Sagres ou cerveja Sagres com bolacha baunilha»!

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Nos intervalos apreciava os golfinhos em grupos, cavalgando as águas, saudando-nos!

Foram eles das maiores belezas que encontrei nesta grande caminhada de milhares de km, ou milhas náuticas. Belezas inesquecíveis

«Às vezes lá aparecia uma alma caridosa que me comprava nas filas do navio Niassa, umas cervejas fresquinhas e uns pacotes de bolachas baunilha. Era necessário ir para filas sem fim para arranjar umas sandes e valia mais passar fome. Para as bolachas, as filas não eram tão grandes e há sempre aqueles que, com dois dedos de conversa, aguentam as mais terríveis das filas. Não é por acaso que lhe chamam "bichas"!

Antes de chegarmos a Luanda, revoltamo-nos. Planeamos um levantamento de rancho. Aquilo começava a ficar terrível para muitos e então, planeamos o primeiro ataque. A Força Aérea e a Marinha decidiram avançar para o levantamento de rancho, sós, uma vez que o maralhal do Exército se encolheu. Por fim, numa terrível guerra de bastidores, os marinheiros também nos deixaram sós.

Por isso, ficando só os técnicos da Força Aérea e os Paraquedistas, cerca de 120, apodados de indisciplinados, decidimos avançar. Para mim sempre entendi que a indisciplina era levada a cabo por aqueles que não cumpriam as regras do jogo e nunca por quem defende os seus direitos dentro dessas regras. O Comando Militar do navio Niassa era exercido por um Coronel do Exército e, a nossa revolta, iria ser uma bronca para o Niassa e para todos os seus responsáveis».

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As orcas, aqueles bicharocos a que chamam de baleias assassinas, também nos encantaram à medida que rumávamos em direcção a sul. Estas meninas são os terrores dos mares. Elas atacam em grupos organizados e nada lhes resiste
 

«Mas, como dizia o Comandante Militar, nós não éramos ninguém. 120 em 1800, pouco valíamos, mas decidimos avançar!
Mandaram-nos formar frente ao comando, como bonecos e foi então que o Sr. Coronel cometeu um erro enorme. Ameaçou-nos! Teve o descaramento de, gritando, nos dizer que nós não éramos ninguém, que pegava nos seus homens, atirava connosco ao mar e até ninguém daria por isso. O Sr. Coronel substimou o valor de homens revoltados, mesmo que pouco mais que crianças, e decididos a levar a sua luta até ao fim.

Um paraquedista, cheio de coragem, tal como se fosse filho de um qualquer Adamastor ou descendente de Neptuno, colocou-se em sentido e disse: "dá-me  licença meu Coronel"? «Faça favor», disse o Coronel. O Pára deu um passo em frente e disse-lhe: "o Sr. Coronel ameaçou que nos podia lançar ao mar. É só para lhe perguntar se quer tentar. Garanto-lhe que não será o Sr. que me vai atirar ao mar e vai ficar aqui de braços cruzados a ver-me bracejar. Eu vou ao mar, mas garanto-lhe que o Sr. vai comigo. Estamos tão pertinho um do outro"!
Houve um bla-bla-bla do Sr. Coronel e fez a devida correcção desculpando-se como pôde e disse-nos que até Luanda seria assim. Em Luanda cada um fizesse como quisesse, mas não tinha hipótese alguma de melhorar o rancho. Porém ficou claro que só sairíamos de bordo quando chegássemos a Luanda!

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Esta é a prova da dignidade desta beleza dos mares. Pelo bem ou pelo mal ele e o homem dão tudo o que têm para atingirem soluções bélicas, nem sempre as melhores, mas nem por isso deixam de ser bons companheiros. Os dois juntos tentam dominar os mares, quantas vezes em nome da liberdade dos mesmos
 

Mas esta viagem deu bem para me divertir, apesar de tudo. Estávamos pelo Equador, rumo a sul, onde uma noite, entre a meia-noite e os 12 minutos seguintes, assisti da proa do Niassa à luta de um grande tubarão com o próprio Niassa. Eu estava só, mas ao ver um militar do exército que vinha apanhar ar e fumar um cigarro, levantei o braço e fiz-lhe sinal para acelerar a ver se ainda conseguia ver aquilo. Estivemos cerca de 12 minutos a ver uma luta terrível entre dois velhos senhores dos mares. Um tubarão e o velho navio Niassa. O tubarão saía debaixo de água e atirava com aquele grande corpanzil contra o Niassa, deixando bem claro que não gostava de o ver nos seus domínios. Foram 12 minutos terríveis. O Niassa sempre a rasgar o mar e aquele senhor dos mares a atacá-lo com tudo que tinha. Dariam 12 minutos de filme incríveis»!

«Que terá acontecido ao tubarão que desapareceu sem deixar rasto? Terá sido troxidado pela hélice do Niassa? Nunca teremos resposta!

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O que melhor recordo, entre Lisboa e Luanda, foram os golfinhos, belíssimos companheiros de caminhada. Umas vezes à esquerda, outras vezes à direita, eles estavam sempre a saudar o Niassa. Também orcas e tubarões e outros peixes nos ofereceram a sua companhia inesquecível
 

Na linha do Equador, estivemos parados cerca de quatro horas. Por ali, o Niassa ficou suspenso na sua âncora e eu aproveitei para fazer algo que dignificasse a minha passagem por aquela linha imaginária. Como era Inverno quando parti de Lisboa, levava comigo umas grossas camisolas interiores para lutar contra o frio, mas ao chegar ao Equador comecei a sentir que o meu amigo Apolo já gozava comigo! Nesse intervalo de tempo decidi afogar alguma roupa pouco adequada, nessa linha imaginária. Chateei-me, peguei nelas todas e lancei-as ao mar. Não sei se alguém fez o mesmo, mas junto de mim ninguém fez. Do Equador para baixo era Verão, o calor iria esturricar e depois, em Moçambique, logo se veria.

Eu sabia que nos planaltos do Niassa faria frio mas, nessa altura, eu apenas sabia que ia a caminho da 3ª Região Aérea. O que realmente me pesava eram os livros, mas esses todos se safaram do banho. Todos me seguiram e regressaram comigo».

Aantes: África à Vista




O Ventor e a sua amiga cegonha, 1969, em Vila Cabral