África à Vista
Saí da Rocha de Conde de Óbidos, no rio Tejo. O rumo, era Moçambique.
Era esta a imagem que eu tinha na cabeça. Desceria o Atântico, entraria no Índico, subiria o Canal de Moçambique e iria parar à baia de Fernão Veloso. Depois seria uma bela caminhada por via férrea para o Niassa. Nova Freixo seria o destino
Estávamos no Inverno de 1968. Mais precisamente, no dia 4 de Janeiro. Era um dia de Inverno, mas estava um dia lindo. O céu estava azul, o rio Tejo imitava-o, as Tágides dormiam e o meu amigo Apolo brilhava!
Eu saí da zona do Chile, em Lisboa, num táxi, rumo à Rocha Conde de Óbidos onde tinha um encontro marcado com o destino. Quando cheguei, já lá estava muita gente de cara triste. Os militares que iam embarcar no Vera Cruz, rumo a Angola, já tinham destroçado da formatura e já subiam as escadas do barco. A algazarra era enorme! Eu saí do táxi, paguei, peguei nas minhas malas e fui-me chegando para o Niassa que estava mesmo ali, em frente do edifício da Rocha Conde de Óbidos. Junto ao Niassa, encontrei os meus companheiros de caminhada da Força Aérea que num grupinho assistiam à formação dos militares do Exército e pedi a um deles, um algarvio, se calhar, descendente longínquo de um qualquer Mohamed (olá amigo Fernandes), para me guardar as malas e me esperar, enquanto eu ia procurar alguns amigos que não tinha encontrado.
O paquete Niassa era um belo barco
O clarim toca a destroçar e, enquanto o Vera Cruz acorda o Tejo com três apitos de alta sonoridade e larga ferros com cerca de 2.000 homens a bordo, eu olhava aqueles que iam ser meus companheiros de viagem, com um semblante enfeitado de uma terrível tristeza. De repente, o Vera Cruz que não se fez rogado, avançou Tejo abaixo e o Niassa aguardava a sua vez.
Deixei as malas com esse meu amigo e voltei pelo sítio que tinha chegado, procurando caras conhecidas. Procurei, no meio da multidão, pessoas que não vi e encontrei outras de quem já me tinha despedido; mais uns dedos de conversa e mais uma caminhada entre a multidão. Entretanto o Niassa rangia à medida que cerca de 1.800 homens iam subindo as suas escadas. Todos carregavam as suas malas. Uma ou duas malas mais uma pesada carga que transportavam aos ombros - a esperança! A esperança do regresso. Regressar era o grande objectivo de todos que subiam aquelas escadas. Mas, essa esperança, tornava-se maior quando, ao voltarem-se para trás, olhavam os braços levantados com umas mãos que seguravam os lencinhos do adeus. Eram milhares!
O Pavilhão dos descobrimentos, visto de Oeste
Voltarei porque o Senhor da Esfera assim o determinara. Eu ouvi-o dizer: "vai Ventor. Vai com confiança, porque tu voltarás a abraçar o Tejo. Este é o teu rio"!
Em Adrão, meus pais e meus irmãos, aqueciam-se ao lume na manhã de um dia frio, julgando-me a entrar no Nº 21 da Av. António Augusto de Aguiar, em Lisboa, ou então pelos subterrâneos do G.D.A.C.I. (Grupo de Detecção, Alerta e Conduta de Intersecção), em Monsanto. Seriam os pensamentos sobre o que liam, do que eu lhes escrevia. Mas não! Eu estava a dar mais umas passadas na minha Grande Caminhada. Nunca os quis atormentar com a minha saída rumo a África. Se fiz bem ou mal, ainda hoje não sei!
Esta é a retaguarda do Pavilhão dos Descobrimentos. Tem na sua vertical a representação de uma espada.
Ela simboliza o tempo em que a vanguarda é garantida pela retaguarda. Sabedoria, determinação e espada!
A aglomeração dos meus companheiros de viagem era enorme do lado da Rocha Conde de Óbidos e, ao chegar ao convés, reparei que muitos choravam de braços no ar, acenando com os bonés, num adeus que parecia não ter fim. Em terra, a multidão era ruidosa. Pousei as malas aproveitando para descansar e resolvi, do cimo das escadas, dizer um último adeus a todos aqueles que se foram despedir de mim, pois sabia onde estavam e, mais uma vez, olhei a gente junto ao gradeamento que me voltou a dizer um adeus arrepiante. Eu fiquei com a sensação de que toda a minha gente se instalara ali, ou então, toda aquela gente era uma imensa extensão de um adeus cheio de imprevisões. Mas não! Todos eles sabiam que eu passara ali como que perdido no meio da multidão e eles adoptaram-me como um dos seus.
Costa sul do Tejo, olhando-a, enquanto o Niassa se emproava rio abaixo, eu sonhava que um dia voltaria ali, aos caranguejos e, da costa norte veria descer a Sagres, encantada com as músicas das Tágides
Mais uma vez consegui furar por entre os meus companheiros até um local donde podia abarcar toda a plataforma portuária. Num local onde deixara os meus amigos que se foram despedir de mim, verifiquei que ainda lá se encontravam e apontavam com o braço o local onde me encontrava para os que tinham mais dificuldades a encontrar a tal agulha no palheiro. Tudo me indicava que encontraram a agulha, coisa que mais tarde confirmei, mas eu, lá do alto, nunca os perdera de vista. Coloquei os meus olhos a caminhar sobre a multidão e parei-os no local onde saltara. Voltei a tirar o boné, a acenar e, verifiquei que o Niassa já não tinha escadas e começava a afastar-se. Já tinha cortado o cordão umbilical para mais uma arrancada, mas aqueles braços continuavam estendidos, a fazer de amarras tentando conseguir, no sonho, que o Niassa regressasse ao ponto de partida. Eles perceberam onde eu estava. Naquele local, no meio da rapaziada do exército, eu era o único da Força Aérea. Acenei, acenei, acenei ... até perdê-los de vista. Naquele momento, todos eles eram a minha gente, mesmo aqueles que, quando eu procurava passar para o lado da guerra, me insentivavam a não saltar, a ficar. A gritarem: "não vá"!
Mas eu fui, sempre a pensar em Adrão.
A seguir: Mar Alto