A Cidade das Acácias
Lourenço Marques, a cidade das acácias. Era conhecida, por todos os portugueses que lá viviam, como a cidade das acácias.
Era assim que o Ventor ouvia chamar-lhe. A cidade feiticeira que encantava todos que lá chegavam. A cidade que mais que qualquer outra o Ventor gostaria de conhecer.
O Ventor encontrava-se no centro do mundo, ao sul do Equador
The Lion Sleeps Tonight [The Beauty of Africa]
Aquele amigo, de olhos esbugalhados, disse: "Oh, Ventor!!! Que raio estás aqui a fazer, pá? Vieste para Moçambique e não disseste nada à malta!? Já não vou trabalhar hoje! Espera aqui um minuto. O Ventor esperou e foi olhando em volta esse seu amigo e a Baía. Lá estava ele a falar com um negro civil que também tinha entrado e deu-lhe as devidas instruções. Depois, conversando os dois, rumaram para a cidade. O seu amigo ligou para o escritório da Companhia (inglesa) e informou-os da sua situação. Tinha chegado um amigo de Portugal e iria mostra-lhe a cidade das acácias. Esse amigo sempre acreditou que, do modo como o Ventor falava de Lourenço Marques, em particular e de Moçambique, em geral, mesmo antes de ir para a Força Aérea, haveria de chegar o dia de lhe mostrar a cidade que enfeitiçava todos. E mesmo sem o Ventor o ter informado, o Senhor da Esfera quis que assim fosse!
O Ventor ainda tinha cerca de 2.000 km para percorrer, na saga dos Lusíadas ...
Assim foi! Meteu o Ventor no carro e foram direitos à Costa do Sol. Desde essa hora da manhã, até cerca do meio dia, correram Lourenço Marques em todos os sentidos. Depois olhou o relógio e disse: "agora vamos buscar o puto que saiu da escola. Oxalá não nos atrasemos". Chegaram ao local da escola e lá estavam dois putos a jogar ao berlinde. Um lourinho e outro negrinho, assim tipo a publicidade da Benetton, de traulitada no berlinde. "Conheces este Paulo"? O puto pegou no berlinde, levantou-se e olhou com atenção. "Eh, BOY"! «Era assim que ele me chamava, cerca de cinco anos antes. Nunca mais me tinha visto. Mas conheceu-me! Com cerca de dois aninhos, ele pedia-me para o levar à rua ver o eléctrico da Carris. Abraçou-se a mim e não tinha dúvidas nenhumas que tínhamos ficado grandes amigos».
«Depois fomos almoçar num dos melhores restaurantes de Lourenço Marques, na Av. da República. Por fim, fomos até ao Aeroporto e passamos a tarde numa grande azáfama, para trás e para diante. Lá para perto da noite fomos jantar a outro restaurante. Fui ver as outras pessoas que não via há muito tempo. Fomos à casa de uns, à casa de outros e vi toda a gente que julgava só voltar a ver, um dia na Metrópole. Se tivesse informado da minha chegada, se calhar, os encontros não seriam tão efusivos.
Por fim, já acalmados da euforia da cidade das acácias, veio o que eu não esperava»!
"Ventor, vou telefonar para o Estado Maior da Força Aérea, ele é meu compadre e vais ficar connosco, em Lourenço Marques. Ficas na nossa casa e vais trabalhar para o AB8. Como a guerra ainda está longe, aqui não fazes nada. Ficas dois anos em Lourenço Marques, podes usufruir de belas praias e ninguém te vai chatear"!
«Não! Tenho um objectivo, há muito definido que não vou desperdiçar. Já que cheguei até aqui, tenho um rumo e esse rumo é o Niassa. Agradeço muito a disponibilidade, sei que seria ideal para quem não está farto de cidades, mas eu fartei-me de Lisboa. Arranjarei maneira de chegar ao AB6, no Niassa. Tenho a certeza que haverá muita malta que vão preferir qualquer outro local para onde eu vá, para trocar comigo se for caso disso. Mas, para já, o meu objectivo será o AB6». "Mas, sendo assim, se estás tão empenhado, eu falo com o meu compadre e ele mete-te lá, até vais poder ir de avião, se quiseres".
«Não, muito obrigado, mas quero seguir o meu rumo com toda a naturalidade. Quero conhecer toda a logística da guerra e, para isso, vou continuar no navio Niassa, até Nacala, o fim da linha. Dali, por avião ou por linha férrea, arranjarei maneira de chegar a Nova Freixo. Comigo, as águas têm de continuar no seu leito.
Tínhamos ordens de regressar ao Niassa pelas 22 horas onde estaria um oficial da 3ª Região Aérea para fazer a distribuição do nosso pessoal. Conversa daqui, conversa dali, tinha marcado encontro com o meu amigo algarvio, para chegarmos ao barco até às 22 horas como estava determinado. Quando ele chegou, diz o meu amigo para o algarvio»: "está a ver este gajo! Podia ficar aqui no AB8 e quer ir para o Norte, para o Niassa. Dá Deus nozes a quem não tem dentes"!
Estava longe da meta do Gama, em Cochim
"Pois é. Só eu queria ficar aqui e não vou poder. Este gajo é burro" - disse o algarvio. Conversa daqui, conversa dali, o Capitão da 3ª Região Aérea ficou no Niassa, até à nossa chegada, cerca da meia noite. Foram os dois últimos a chegar ao Niassa!
"Com que então, já vi que gostaram de Lourenço Marques. Mas eu aproveitei para beber aqui umas laurentinas mas não gostei nada. Não! Não foi das laurentinas, podia bebê-las noutro lado! Por isso, como castigo, vocês que até podiam ficar cá, no AB8 ou, onde quisessem, vou enviar-vos para a Base Aérea 10, para a Beira". Virou-se para o Ventor e repetiu: "você tem notas para ir para onde quiser. Era só dizer e, como castigo, vai para a Beira e esse amigo vai consigo"!
«Já pedi desculpa pelo atraso - disse o Ventor - e, quanto a ir para onde quiser, estou-me nas tintas para onde vou. Podia ficar nesta cidade vou para outra. Que interessa»?
"Ai é assim? Então vão para um sítio pior, para o AB5, em Nacala e acabam-se as cidades"!
«Pela informação que tenho, há lá boas praias, se calhar melhores que as da Beira - disse o Ventor. Vou bem na mesma. Virou-se para o algarvio e perguntou-lhe: «e tu, pá»? O algarvio encolheu os ombros.
"Não há nada a fazer. Vou enviar-vos para o pior sítio de Moçambique - o AB6, em Nova Freixo"!
«A mim, por castigo AB6, pronto mas, Sr. Capitão, deixe este gajo ficar em Nacala, ele é algarvio, gostará, certamente, de ficar junto de uma praia».
"Era o ficavas! Vão os dois para o AB6".
«Eu irei - disse o Ventor - eles se calhar não»!
Acabou-se a algazarra no Niassa. Segundo o Ventor, esse Capitão até parecia um tipo porreiro. Se o Ventor não tivesse por objectivo o Niassa, está convencido que faria outro jogo e tudo voltaria à primeira forma. Mas o Ventor tinha o seu objectivo alcançado - AB6, era ali que tudo teria de começar. Foram-se deitar mas o Ventor não dormia. «Por minha causa, aquele gajo vai ter de ir para onde não queria. Ele tinha-me dito»: "não te preocupes comigo, o que não tem remédio, remediado está"!
Mas ele tinha sido amigo do Ventor a valer. Tinha-lhe guardado as malas, em Lisboa, evitara-lhe muitas filas no Niassa, pelas cervejas e bolachas baunilha, e o Ventor achou que, se pudesse fazer algo por ele, tentaria.
De manhã, lá estava o seu amigo que a cidade tinha enfeitiçado. "Não vou trabalhar, vamos passear"!
«Aquele gajo que esteve connosco ontem, que tanto queria ficar aqui, foi empurrado comigo para Nova Freixo e a culpa foi minha. Ele podia ter ficado na Beira mas eu enrolei tudo. Se tiver bastante confiança com esse Coronel tirocinado, o seu compadre, podia pedir ao gajo para ele ficar cá». "Se é isso que tu queres, vou-lhe telefonar e falo com ele".
Daqui por algum tempo, veio a resposta: "fulano não vai partir para Nova Freixo, foi convocado para o AB8".
O Ventor iria perder um amigo para sempre, pois nunca mais o viu. Mas, durante os dois anos, comunicavam por rádio de vez em quando, quando se proporcionava e quando o Ventor transgredia.
O Ventor não se recorda bem dos timings do Niassa mas recorda-se que se despediu daqueles amigos que só voltou a ver, e não todos, dois anos e um mês depois, em Fevereiro de 1970. Só anos depois, encontrou, por casualidade, no Rossio, o seu amigo da Nazaré e já passaram cerca de 30 anos. Nunca mais viu ninguém dessa gente de Lourenço Marques. Foi conhecendo outros.
O Ventor não se importava de seguir, até ao fim, na rota do Vasco da Gama
Entretanto, depois de um dia e meio frenético, em Lourenço Marques, chegou a hora da partida. A próxima meta do Ventor iria ser Nacala. O navio Niassa seguiria mais para Norte, creio que até Mocimboa da Praia, para largar carga e militares do Exército. Para a Força Aérea, Nacala era o fim da picada.
O Ventor viu retirar as amarras ao navio Niassa, viu que ainda estava no mesmo local um dos dois carregueiros soviéticos e que a sua tripulação lhe parecia simpática porque, do convés do seu carregueiro, assistiram ao adeus de gente de Lourenço Marques ao Niassa, os choros de familiares e dos amigos dos que seguiram viagem como ele e, os soviéticos, quando ouviram o Niassa apitar, iniciando o arranque para abandonar a Baía do Espírito Santo e se fazer à largueza do Oceano Índico, partilharam com eles as suas saudações, levantando os braços, acenando e sorrindo.
Cruzando a baía a toda a largura, o Niassa parecia dizer aos areais da antevéspera para se afastarem. Ao sair da Baía do Espírito Santo, o Ventor caminhou para a ré do navio Niassa, voltou a olhar Lourenço Marques e, lembrando-se dos seus amigos, perdendo-a de vista, disse: «adeus, cidade feiticeira, até um dia».
Antes: Lourenço Marques
A Seguir: De Lourenço Marques a Nacala